terça-feira, 14 de outubro de 2008

Para minha irmã mais nova

Eu lembro nítidamente do dia em que você nasceu. No dia 14 de outubro de 1988 eu tinha quatro anos, trezentos e dezessete dias e algumas horas, o que na época, para mim parecia muito. Mamãe, papai e vovó me acordaram cedo para que fôssemos logo para o hospital, pois sua cesárea estava marcada para as sete da manhã.

E lá fomos nós no Chevette cinza escuro metálico. Eu dormi no caminho. Chegamos lá, mamãe entrou com papai pela porta de atendimento e eu fiquei na sala de espera com a vó. Coitada da vó. Mal sabia ela do que a esperava. Acho que nunca vi aquela doce mulher tão brava. Mas não foi à toa, eu coloquei toda a paciência dela à prova, infernizei a vida dela e do resto dos funcionários do hospital.

Eu estava acostumadíssima a fazer partos. Era um processo extremamente rápido, prático, limpo e eficiente. A mãe e o bebê chegavam à mesa de cirurgia, era feita uma incisão na barriga, o bebê saía por baixo da camiseta, o bebê chorava e pronto! Mamãe e bebê passavam bem e iam para casa. Mas no dia em que você nasceu não foi bem assim.

Cheguei bem disposta, sabendo que talvez esse processo levasse algum tempo, mas um tempo suportável. Até trouxe um “kit-entretenimento” munido de revistinhas e uma caixa de Bis. Em uma hora ou duas eu não seria mais filha única e teria uma irmã para brincar comigo. Só que o tempo foi passando lentamente e toda aquela disposição começou a se transformar em impaciência e toda aquela impaciência se transformou em chateação alheia. O tempo é relativo e para uma criança pequena uma hora dura três. Estava demorando demais! Partos não deveriam ser demorados! Achei muito estranho. Fiquei o tempo inteiro questionando a competência da equipe daquele hospital. Onde já se viu demorar tanto pra se tirar um bebê de dentro da barriga da mãe! Uma coisa tão simples!

Distrair uma criança com um pouco de TV poderia ser uma boa solução. Mas eu não era uma criança qualquer. Eu era seletiva, chata e assistia a programas educativos da TV Cultura. Estava passando o Xou da Xuxa. Eu não gostava da Xuxa e nem dos desenhos chatos que passavam no programa. Comecei a protestar. No programa da Mara, embora achasse ela uma chata de galocha, ainda passava o desenho do Pica-Pau ou do Tom & Jerry. Protestei mais. Vovó pedia que eu ficasse quietinha, pois estávamos em um hospital. Parei de protestar, mas me senti injustiçada demais para ficar calada e fui educadamente pedir no balcão que trocassem de canal. Pedido recusado. Só pegava Globo naquela TV. Eles não sabiam o que estavam fazendo. Não se deixa uma criança hiperativa, chata e seletiva, de quatros anos, trezentos e dezessete dias com algumas horas sem desenho animado decente.

Saquei uma revistinha em quadrinhos do Garfield. Eu era uma leitora precoce de apenas quatro anos, trezentos e dezessete dias e algumas horas a mais do que quando cheguei no hospital naquele dia. Estava aborrecida. Aposto que vovó e as outras pessoas do recinto desejaram que eu não soubesse ler. Comecei a ler minha tirinha favorita naquele momento, com a qual eu me identificava totalmente durante aquela longa espera. Era uma tirinha de três quadrinhos com o gato laranja e gordo na mesma posição resmugando num balãozinho de pensamento como um mantra rabugento: “tédio, tédio, tédio, tédio, tédio, tédio, tédio...”. A palavra tédio se repetia e se espalhava como praga e engordava o balãozinho a cada quadrinho. Algum tempo antes desse episódio eu perguntei para meu pai o que queria dizer tédio. Naquele dia eu vivi o tédio intensamente pela primeira vez depois de descobrir o conceito. Pois aquela menina hiperativa de quatro anos, trezentos e dezessete dias e mais algumas e lentas horas na bagagem tomou o mantra do tédio para si. Bradava em alto e bom som: “tédio, tédio, tédio, tédio, tédio, tédio, tédioooo!!!”. Continuei protestando com meu mantra até tomar um puxão de orelha. Foi então que resolvi me mexer.

Fui até à recepção, fiquei na ponta dos pés até alcançar a beirada do balcão e me pendurei para pedir informações sobre o parto:

- “Moça, a minha irmã já nasceu? Eu nasci às nove horas da manhã e já são quase onze!”

Minha irmã já havia nascido. Mas não era só nascer, havia todo um longo e complexo processo por trás do simples ato de nascer que eu desconhecia.

Fiquei um pouco mais consolada. Em alguns minutos minha mãe e meu pai sairiam pela porta carregando minha irmã, voltaríamos para casa e todas aquelas horas agonizantes teriam ficado para trás. Vovó abriu a caixa de Bis e eu fiquei tranqüila.

Estava quase caindo no sono no colo da minha avó quando uma das moças da recepção nos chamou discretamente e uma enfermeira nos levou até uma salinha. Eu não entendi bem o que estava acontecendo. Recebi a instrução de ficar quieta, de forma que ninguém pudesse perceber minha presença, pois crianças não eram permitidas no recinto, especialmente crianças falantes de quatro anos, trezentos e dezessete dias e várias e cansativas horas. Fiquei calada.
De repente a porta se abriu. Era meu pai e uma enfermeira com um carrinho de lona branca. Dentro do carrinho de lona estava você. Pequenininha, enrolada em uma manta, com os olhinhos entreabertos e carinha de cansada, sem prestar muita atenção no que estava acontecendo.

- “Ana Luiza, essa é a sua irmãzinha”.

Naquele dia, na hora do almoço, vovó ficou com a mãe e eu e o pai saímos juntos. Ele tinha ficado sabendo da minha impaciência na sala de espera e me comprou um pega-peixe para eu me distrair e parar de azucrinar a vida da vovó e das atendentes do hospital. Mas eu já estava tranqüila, minha irmã já tinha nascido e agora eu era a irmã mais velha, o que para mim era uma grande responsabilidade. Paramos em uma loja de roupas para bebês para comprar sua primeira roupinha oficial. Passamos um tempão vendo roupinhas de nenê. Ficamos em dúvida sobre qual cor seria a mais adequada. Eu era contra cor-de-rosa. Achava chata essa imposição de rosa para as meninas e azul para os meninos. Escolhi um macacão amarelo e branco.

Isso foi há vinte anos...

Feliz aniversário, Raquelzinha!

Da sua irmã, Ana Luiza aos vinte e quatro anos, trezentos e dezessete dias e algumas horas que passaram rápido demais.

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